quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Paralelo




Quem você imagina que vai ser daqui um ano? Ou melhor, o que você imagina que vai ser?

Existe uma cidade, se você pegar a estrada principal saindo dela, vai encontrar um lago, se seguir o rumo desse lago chegará até uma grande árvore que costuma dar flores amarelas no mês de maio, ali você deve virar na estrada de terra de encontro às montanhas, se por acaso não for encontrado ou atacado vai chegar até onde estou escrevendo essas palavras.
Não sei como o vírus se dissipou, nem de onde surgiu ou como começou, eu sei que viver no meio dessas coisas parecia mais emocionante ao assistir um trash na televisão, sentada no tapete de plumas da mamãe, entre meus irmãos mais novos e alguns amigos. Eu não sei como o vírus se dissipou, nem onde surgiu ou se quer como começou, mas eu sei tudo o que ele me tirou.
Eu estava dormindo quando senti o cheiro do caos, acordei ouvindo os gritos da minha mãe que pareciam vir da cozinha, não tive coragem de descer as escadas, somente quando meu irmão mais novo me olhou piedosamente com medo foi que criei coragem. Cada passo era um rangido diferente, ausente, e quando cheguei ao destino a enxerguei repleta de morte, seu corpo já pálido caído ao lado do corpo também pálido do meu pai, foram as mortes menos dolorosas, aquelas que eu não vi, seja o que for já havia partido.
Me senti tão gélida, tão morta por fora, sem reação, meus irmãos se abraçavam e clamavam ao lado dos corpos, e eu achando que era um sonho ruim, meu pensamento ordenava: “Acorda, acorda Angie, você precisa acordar!”. Foi ao dar um passo brusco para trás e esbarrar no copo de vidro sobre a mesa, que se espatifou ao chão deixando vestígios de seus cacos presos entre meus pés, que pude sentir a dor, angustia remoída e percebi que estava acordada e o pior? Viva.
Corri e abracei os meus pequenos, temi e finalmente chorei, não de saudade, mas desespero, eu tinha apenas treze anos, como poderia cuidar de dois irmãos mais novos sozinha? Ouvia sirenes, grunhidos, gritos, todos vindos lá de fora, mas o que mais me comovia eram os soluços sentidos dos meus irmãos, me levantei heróica, desacreditada e olhei pela janela, enxerguei tudo aquilo que eu via nos filmes, que eu pretendia um dia criar em um estúdio de cinema, era tudo real, eu quase podia tocar, monstros ou seja lá o que fossem perambulavam pelas ruas e arrancavam cabeças, moíam os corpos, os devoravam, pareciam tão irracionais.
Me sentei na poltrona me imaginando em um mundo paralelo, o que eu era agora afinal? Olhei para o sofá mais uma vez, os meus dois pequenos dormiam tranqüilos finalmente, eles não podiam entender, olhei para o rumo da cozinha onde a porta se mantinha agora encostada, o cheiro estava ficando desagradável, temi que isso atraísse outros, resolvi sair, ao abrir a porta da frente o sol nascia e a rua estava quieta, calada, descuidada.
Tia May, ela era o meu único refugio, acordei as crianças, enchi algumas malas, só não peguei mantimentos, não me atreveria entrar na cozinha novamente, corremos para a garagem, eu nunca havia dirigido um carro, demorei horas até entender os comandos, tentava me recordar de como o papai fazia para nos levar até a escola, quando me dei conta, corria as ruas, e toda a cidade estava no mesmo estado caótico.
Passamos frente a um mercado, era minha chance, estacionei e ordenei que os pequenos ficassem abaixados e não saíssem de lá de dentro por nada, o lugar estava vazio, e eu pude pegar o que tive vontade, acho que demorei mais do que o devido lá dentro e quando olhei pra trás vi um dos meus irmãos de cabeça abaixada segurando seu ursinho, me espantei e corri até ele, mas ao chegar perto me afastei, vi que por ele escorria sangue, meus olhos se arregalaram por instinto, quando ele finalmente me fitou mastigava um pedaço de alguma carne e seus olhos estavam avermelhados, sua face perdera a expressão da infância, corri para fora atordoada, e quando olhei para o carro, pendurado pela janela estava o outro, o mais novo, lhe faltava um pedaço do rosto, ele havia se tornado o almoço do próprio irmão, caí de joelhos, os senti latejar contra o chão, foi quando finalmente chorei de verdade, não apenas lágrimas mórbidas correndo a face, mas um grito alto da alma, foi quando notei que três daquelas coisas se moviam até mim, nem tão ágeis, nem tão lentos, tive vontade de ficar e morrer, mas tive medo de me tornar um deles, me ergui e entrei no carro, empurrando com aperto no peito o corpo do meu irmão para fora, sai em disparada, consegui atropelar um deles que se desmanchou no vidro do carro, eu corria, não via mais os sinais, não via mais quem era gente ou bicho, peguei a estrada, a cabana da tia May era meu único objetivo, eu chorava a culpa.
Quando finalmente aqui cheguei, chamei, ninguém me ouviu, tive medo, e se ela tivesse ido até a cidade? Estaria morta? Teria se tornado um deles? Eu entrei e me acomodei, consegui viver alguns meses pelo pouco que a terra me dava o direito de comer e até secar o poço, mas um dia eu saí para olhar o sol mais de perto do alto da montanha, e eu senti que alguém deveria agir, o último noticiário deixara claro que era um vírus, um experimento mal feito, mas fazia tanto tempo que talvez não existissem mais humanos, talvez eu fosse a última da minha raça.
Eu preciso ir, preciso ver o que há lá fora e se ainda há alguma coisa, se por acaso isso for encontrado talvez signifique que eu morri, ou ainda uma conquista maior, eu não era a única, como posso vencer seres irracionais e sem força? Eu os posso vencer? Eu terei um futuro?
Meu nome é Angie, e por muito tempo eu fui um anjo, vagando triste nas alamedas do meu eu, superando (ou tentando) a morte e os vestígios cortantes que ela queimou em mim, agora vou agir, vingar se preciso for, mas vou, eu cresci muito em pouco tempo e quero ir atrás da parte que perdi em algum lugar. Me perdoem os fracos, mas eu não vou me esconder por toda a vida.
Existe uma cidade, se você pegar a estrada principal saindo dela, vai encontrar um lago, se seguir o rumo desse lago chegará até uma grande árvore que costuma dar flores amarelas no mês de maio, ali você deve virar na estrada de terra de encontro às montanhas, se por acaso não for encontrado ou atacado vai chegar até onde eu estive me torturando por muito tempo.
Eu nunca pensei que pudesse existir algo depois da morte, agora eu sei, e é pior que qualquer inferno.

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